7.25.2010

Capítulo 13 - "Are you talking to me?"

Imerso naquela imagem bizarra de pessoas desesperadas no centro da cidade eu tentava encaixar os fatos e definir uma realidade que fizesse sentido. De repente eu me encontrei analisando toda a minha vida. É engraçado como as coisas perdem o sentido quando você não está inteiramente focado nelas. Várias perguntas começaram a surgir na minha cabeça, e uma insistiu em não ir embora: O que eu estava fazendo ali? Enquanto eu buscava respostas um raio de luz, ainda vermelho, encontrou meus olhos. Estava amanhecendo, e pela janela do caminhão eu podia ver, lá no horizonte, aquele degradê que surgia laranja por trás de uma colina e chegava já azul por onde eu passava. E uma paz crescia dentro de mim como aquele disco amarelo que ia se formando no céu, iluminando a paisagem e aquecendo tudo em volta, me confortando e afastando aquelas duvidas. Quando o caminhão parou.

"Ultima parada antes de Quebec" disse Eurípedes, abrindo a porta e saltando para fora. "Vá comer alguma coisa e esteja aqui em 30 minutos" acrescentou antes de virar as costas e andar em direção a uma loja de conveniências. Eu desci da cabine, Fred logo atrás de mim, e alonguei as costas um pouco, havia umas 6 horas desde o ultimo pitstop. Eu não estava com fome, então encostei no caminhão, cruzei os braços e esbocei um bocejo. Fui me dirigir ao Fred, mas ele já estava longe, entrando na loja. "Que que aquela galera tava gritando, desesperada?" eu me perguntei, "quando o Fred voltar eu pergunto pra ele". Nesses últimos dias eu havia criado a mania de conversar sozinho, como se o pensamento não fosse suficiente para externar o que eu sentia. No começo eu tomava cuidado para ninguém ouvir, talvez com medo ou vergonha, mas depois eu passei a achar graça em as pessoas pensarem que eu não sou normal. Outra desculpa que eu me dava era que desse modo eu treinava meu inglês, embora sozinho eu falasse mais em português.

Entediado, resolvi ir até a loja para encontrar os dois. Chegando perto da porta eu escutei uma voz feminina: "Are you talking to me?". Voltando para a realidade, de uma divagação provavelmente em voz alta, eu vi uma menina, olhos cor de mel, cabelo loiro, ondulado, olhando para mim, com cara de interrogação. E como eu passara um tempo sem dizer nada, ela disse novamente "are you talking to me?"

6.13.2010

Capítulo 12 - Put Your Earplugs (alternate take)

- Oh, nice. People say it is a beautiful country. I've a friend that's into politics and stuff, and he said your president is doing a very good job.

Eurípedes disse que não sabia da política brasileira há um tempinho. Me arrisquei:

- Well... I'm not really into politics, i guess... But I voted for Lula at the elections. He's kinda neutral, you know? Plays on the center, pleases everyone, it's what I think. People love him.

- Yea, he told me so, this friend... - houve uma pausa breve de silêncio e cabeças consentindo com nada. - By the way, I'm Fred, Fred Goodman.

Eu e o outro nos apresentamos também. O papo não iria muito longe mesmo - pelo menos não foi sobre o Ronaldinho que ele puxou assunto. Eurípedes notou meu Ipod quando fui desligá-lo:

- Dark Side of the Moon? Gosta de progressivo?

- Puta cara, eu viajo... É muito bom, gosto pra caramba.

- Ah, tem um negócio jóia que cê vai gostar aqui então...

Tirou um disco de um case recheado.

- Comprei anteotem, é um som novo do guitarra do Mars Volta... conhece?

- Cara... já ouvi Mars Volta e tal... curto umas músicas, mas acho a maioria meio ruidosa, sabe? Acho meio difícil de ouvir.

- Pode crer, sei do que cê tá falando. Mas esse som é bem suave, acho que cê vai gostar.

Ele aumentou o volume e um som agradável se espalhou com rapidez. Não havia percursão; apenas sons leves, profundos e melancólicos de uma guitarra bem resolvida, apoiada por sintetizadores. Fred havia recostado a cabeça, e já cochilava. Ficamos em silêncio ouvindo o som, mas ainda numa espécie de conversa. Coversávamos por meio da experiência em comum do sutil êxtase da contemplação musical. A melodia sintonizava, deixava os sentidos à mercê de ondas sinérgicas que organizavam as sensacões de quem nela mergulhasse. De quem aceitasse sua sedução. Fiquei aliviado de não estar mais naquele ônibus estranho de janelas vedadas; além do mais, Eurípedes era um sujeito e tanto, e o Fred também parecia bastante simpático. Fiquei notando a expressão imóvel dele, a serenidade do estado inconsciente, com a mandíbula relaxada e as sobrancelhas levemente arqueadas, satisfeitas com o descanso. Usava tampões de borracha nos ouvidos, ligados por uma cordinha azul.

Então me veio o estalo: Fred era o homem desesperado que gritava no centro de Toronto "put your earplugs!".

6.06.2010

Capítulo 11 - Porque não?

Não, eu gritei.

Estou indo pegar minhas coisas no ônibus, vou aceitar sua carona.

Eurípedes encostou o ombro na porta do caminhão e com um aceno de cabeça concordou em me esperar.

Peguei minhas coisas rapidamente no ônibus e sai novamente em direção ao caminhão.

Chegando ao caminhão, perguntei a Eurípides se ele conhecia o homem de barba ruiva. Ele disse que não. Também tinha oferecido carona a ele e ele tinha aceitado.

Me ajeitei dentro da cabine, o homem de barba ruiva entrou e se ajeitou também enquanto Eurípides ligava o caminhão.

Depois de alguns minutos de estrada, Eurípides e eu começamos a conversar em português. Nossa, como sentia falta de poder falar minha própria língua. Não demorei muito para entender o entusiasmo de Eurípides quando falou comigo suas primeiras palavras em português.

Eurípides me dizia que já morava no Canadá a mais de 17 anos, já tinha passado por cidades como Londres, Berlin, Paris, Amsterdam e foi amarrar seu bode em Kemptville, uma cidadezinha no interior do Canadá com menos de 10 mil habitantes.

Logo fomos interrompidos pelo homem de barba nos perguntando qual era a nossa nacionalidade.

Eurípides respondeu com um ar nostálgico em sua voz. We are Brazilians.

5.16.2010

Capítulo 10 - Crossroads

- Tenho, tenho sim. Mas você costuma falar em português com qualquer um, é?

O homem sorriu, com os braços na cintura e cabeça baixa.

- Depois de um tempo aqui você aprende a ver quem é brasileiro. E esse cigarro ai, tem ou não?

Entreguei a ele o maço todo. Ele acendeu um e logo voltou ao pneu do caminhão.

- O que houve aí, senhor..?

- Eurípides. Ah, só tá um pouco vazio. Puxa a mangueira de ar ali pra mim?

- Opa.

Entreguei a ele a mangueira e decidi voltar ao meu banco. Ele parecia ser simpático, mas eu não estava para conversa naquela noite. Logo que virei as costas e comecei a andar ele perguntou:

- Rapaz, você tá nesse ônibus pra Quebec, né? Não te interessa uma carona até lá?

- Ah, não sei. Minhas coisas já estão todas no ônibus...

- Vâmo lá, rapaz. Tô precisando praticar meu português, vai.

- Valeu, mas deixa pra próxima. Boa viagem ai pro senhor.

Virei as costas e me dirigi ao ônibus, apertando o passo. Eurípides soltou uma gargalhada meio contida e voltou ao pneu.

Antes mesmo de eu dar meu segundo passo em direção ao ônibus, vi o homem da barba ruiva vindo em direção ao caminhão do seu Eurípides. Reparei que ele tirava seu "earplugs".

- So, is it all set? - disse ele, já abrindo a porta do caminhão.

- Yeah, yeah. - respondeu Eurípides, sorrindo para mim.

5.01.2010

Capítulo 9 - Pitstop

Eu realmente não conseguia me lembrar de onde a conhecia. Mas eu tinha certeza que já a havia visto, me parecia muito familiar.

Varias imagens então começaram a vir à minha cabeça, como seu eu procurasse uma foto guardada na minha mente que me faria lembrar daquela barba. Os lugares iam-me passando assim como as paisagens, escondidas pelo preto do pano que cobria as janelas, iam passando lá fora e, antes que eu conseguisse me lembrar, o ônibus parou. O motorista anunciou algumas palavras às quais eu não prestei muita atenção, e saiu do ônibus. Algumas pessoas levantaram, meio sonolentas, e saíram também. Permaneci sentado por um momento, mas logo, agoniado, me levantei e saí para respirar um ar fresco.

Não havia uma nuvem sequer no céu. As estrelas brilhavam com toda força e uma lua cheia iluminava a noite fria. O verão já havia começado, mas a primavera ainda assoprava seus últimos suspiros. Voltei para pegar meu casaco e depois entrei no restaurante do posto. A pausa, que o motorista havia anunciado e que só agora eu tinha me tocado do que se tratava, estava para acabar e várias pessoas já haviam retornado para o ônibus. Pedi um café expresso e saí. Havia um banco do lado da porta, no qual eu me sentei e fiquei apreciando aquela noite deserta enquanto um vento gelado e revigorante corria pelo meu rosto.

Logo ao lado do restaurante estava estacionado um daqueles caminhões enormes e imponentes, com dois escapamentos subindo pela cabine, um de cada lado, e atrás um baú gigante, todo preto, e estranhamente sem nenhum logotipo estampado. Havia um homem gordo, corpulento e aparentando uns 50 anos agachado ao lado da roda dianteira, consertando alguma coisa. Mas o que chamou mesmo a minha atenção foi o fato do homem estar sem camisa - devia estar fazendo uns 5 graus. Meio intrigado olhei para o meu café, quentinho, fechei os olhos e tomei o último gole bem devagar, apreciando cada instante e sentindo aquele calor esquentando meu corpo por dentro. Antes de abrir os olhos novamente uma voz grossa e rouca ressoou pelo meu ouvido:

- Ei filho, você tem cigarro aí?

4.25.2010

Capítulo 8 - O valor da equação

Acordei meio suado, como de costume. O assento antes vazio ao meu lado agora abrigava um homem corpulento que roncava. Eu não o conhecia de algum lugar? The greatest gig in the sky sussurava de novo no meu ouvido, por qualquer coincidência - as músicas rodavam aleatoriamente. Tive a impressão de estar numa galera, na partição onde os escravos remavam como dínamos tristes; no convés, Brizo, áurea e poderosa sob a benção de Poseidon, descobria terras novas empunhando seu cetro e seu tridente, vislumbrando lugares, naturezas e criaturas incríveis. Toda uma realidade da qual eu seria refém, uma descoberta feita por outrem.

Lembrei da Clara, uma coreana da sala de aula. Os orientais escolhem nomes ocidentais quando vão para a gringa. Tive um pouco de saudades dela. Um monte de gente surgiu a partir desse sentimento, como se fosse injusto eu ter saudade só dela, como se eu devesse saudades à minha família, ou ao Eric, lá da república. Sei lá. Eram pessoas legais, talvez fosse justo eu ter saudade de todas. Resolvi pegar o sudoku. Quantas horas de viagem já haviam se passado? Minhas pernas doíam um pouco, mas não tive vontade de acordar o grandalhão. Ele segurava um livro aberto, deve ter dormido lendo. Estiquei o pescoço pra ler (o texto estava em inglês):

...o ser humano não vale nada: é uma equação que resulta em zero. Todo seu funcionamento se baseia em alimentar-se e expelir, ganho para o gasto. Assim, sua existência não tem valor - ou seja, vale zero. O que vale - se algo tem mesmo algum valor - é a equação em si.

Esbocei um riso de satisfação e olhei pra ele mais uma vez. De onde eu conhecia aquela barbona vermelha?

4.18.2010

Capítulo 7 - Caixa preta

Logo pensei, foi o sono que fez eu perder meu raciocínio e acabei me distraindo colocando dois números na mesma fileira, mas como será que eu havia conseguido terminar meu Sudoku com um erro tão na minha cara? Fiquei pensando nisso quando olhei para as janelas do ônibus e não havia notado que elas estavam revestidas com um pano preto. Aquilo me atormentou; estava tão distraído que não havia notado meu erro no sudoku e muito menos as janelas revestidas de preto.

Fui direto ao motorista perguntar o porquê daquilo. No meio do caminho parei e pensei se realmente eu queria saber o motivo das janelas vendadas, na verdade eu não queria. Tive a sensação que minha viagem seria muito mais emocionante se eu não soubesse o porque daquilo. Era isso mesmo que eu queria, deixar tudo acontecer livremente, sem minha interferência de saber os porques de tudo.

Mas uma coisa me deixou muito intrigado. Será que aquelas pessoas do ônibus não estavam nem um pouco incomodadas com o fato de não poderem ver o caminho que estavam seguindo? Sentei de volta em meu lugar pensando sobre isso, fechei os olhos e o ônibus continuou seguindo.